Muitos pediram o relato pleno do Espírito de 78

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Fotografo Clandestino
Spirit of 78 Triathlon

Muitos pediram o relato pleno do Espírito de 78. Esses muitos certamente aguardarão o relato, minuto a minuto, dos movimentos e dores.

Ora, o Espírito de 78 merece bem mais do que uma ladainha de dores. Merece antes a História de Sorrisos.

Sorrisos que, antes da entrada na água, ainda em lusco-fusco, eram de excitação púbere. Todos a descer por uma encosta até ao Douro, em fila mal-amanhada, alguns ainda sem sorrir, tensos, outros de sorriso impaciente, aguardando pelo primeiro mergulho. E outros ainda, os amigos, os familiares, sorrindo mais que os atletas, que mergulhariam eles também com os protegidos, que o mergulho seria obra coletiva.

Fazendo-se luz, clara que bastasse para ver os primeiros hectómetros adiante, todos afundaram a cara no Douro. Sem que se vissem sorrisos, de tão afundados os rostos.

A natação é o longo momento do sonho. É o momento em que o atleta pouco vê, menos ouve, limitando os sentidos ao cheiro e paladar. Ao menos os pitosgas, como alguém vosso conhecido.

É o momento místico por excelência, em que cada braçada se esvai em um ímpeto ascético.

E as margens voam ao lado, as boias passam, até vermos as chaminés do Freixo, sinal de que deveríamos abordar a margem.

E, após, os sorrisos espantados e abertos de quem nem sonhava ser possível voar dentro de água, que os tempos foram de foguetes.

Os amigos e familiares concentram-se junto às bicicletas para a primeira transição. E enquanto os atletas se espantam com tempos, as mulheres vão abraçando os maridos e namorados, que os risos femininos não são demonstrações de alegria, mas de propriedade. E os não-risos dos filhos, admirados com os adultos, tornados imagens ou modelos de como se comportarão dentro de anos. E os sorrisos fascinados dos fotógrafos, fascinados e infantis, excitados por tantos e tantos modelos de emoções que lhes saíam da água direitos ao obturador. Sim, a face do fotógrafo barbudo que surpreendia os nadadores à saída da água, enquanto se equilibrava e desequilibrava em posições hindus, rindo com todos os momentos que ia fixando na memória da sua máquina. Era um sorriso de felicidade. Ao subir os degraus que mergulhavam o Douro, ao fixar o fotógrafo em desequilíbrio, barbudo, lembrei-me de como sorririam Patrícia Naré Agostinho, Misé Pê, João Manuel Sousa Santos ou Nuno Torres, caso tivessem chegado a tempo de captar as imagens de tantos e tantos sonhos a sair das águas e a subir à Marina do Freixo.

Depois, na estrada, os sorrisos foram mais evidentes. Andávamos às voltas, num circuito de 15 Km para lá do Porto e 15 Km de regresso, permitindo que cada atleta se cruzasse com outro duas vezes por giro.

E, sobre as bicicletas, os sorrisos iam explodindo, cada vez mais abertos e extrovertidos.

Em particular, eram belos os sorrisos femininos. E não procurem aqui qualquer laivo de ideologia de género: a mulher, junto ao seu homem, tem um sorriso de combate, marcando propriedade; sobre uma bicicleta, a mulher, só e independente, exibe um sorriso de dádiva. Sobre uma bicicleta, a mulher não revela mera simpatia, oferece-se da única forma que conhece: totalmente, generosamente, sem limites.

E cada atleta feminina ia irradiando dádiva com os lábios.

Também os homens iam sorrindo, claro. Mas os nossos sorrisos não são generosos, belos, perfeitos. São sorrisos camaradas, ao jeito de um combatente com licença para brincar às bicicletas extramuros. E nem outra coisa seria de esperar da nossa parte.

Até que chegou o momento em que, um por um, fomos saltando da bicicleta. E é o Paraíso enquanto mudamos as sapatilhas. Sabemos que aí vem a Maratona, mas sonhamos ainda, sorrimos agora com bazófia contida, gozando com mais uma prova no papo.

E, quando o corpo julgava que se seguiria o banho e a cama, sorrimos para as pernas com sarcasmo e ordenamos-lhes que corram. E as pernas obedecem, e começa o banho hormonal, o momento em que os sorrisos se tornam mais abertos do que nunca.

E já não sorrimos, rimos, de forma insolente, néscios com o corpo, de quem julgamos ser tiranos.

Até chegarmos aos 20 Km, altura em que os sorrisos se apagam e as dádivas se ocultam.

Mais uns passos e os lábios espumam de raiva, que é um absurdo correr com o corpo desligado, é tolo sofrer tanto por tão pouco.

E, nisto, cai a noite. E o primeiro pingo. E vem a primeira rajada de vento. E os céus desfazem-se sobre o caminho. E os corpos são dominados pelo frio, pelo abandono. Não há ninguém na rua, estás só com a tempestade, com água a penetrar-te os ossos, como se fossem esponjas.

E, quando a solidão fria, escura e húmida envolve os esqueletos de uns tantos cadáveres que insistem em calcorrear a marginal meio-despidos, eis que alguém estende um colete.

Era a mulher do Pedro Leiria, estendendo o que pareceu ser um manto púrpura dos Augustos bizantinos.

E aquele pedaço de roupa foi capaz de aquecer a alma e de abrir o sorriso, que há mais de 20 Km estava encerrado num armário de dores, exaustão, fome, frio e humidade.

Só ali se deu a conhecer, em toda sua significação, o mito de São Martinho. Como podia a capa do oficial romano proteger, do frio, dois homens, o doador e o mendigo, se a metade só cobriria meio corpo a cada um? E se o frio não for expulso pela roupa, mas pelo olhar de quem estendeu a roupa ao mendigo?

Nunca um pedaço de pano foi capaz de tanto aquecer um corpo exaurido e de ressuscitar uma alma quase desfalecida.

E, quando a tempestade mais assolava as margens do Douro, eis que surgem três cadáveres no meio da solidão, novamente sorrindo, e quanto mais os corpos se confundiam com as águas vindas de cima, mais os sorrisos voltavam a rasgar as bocas, agora serenas, sempre teimosas, jamais desistentes, dos derradeiros três atletas, já não cadáveres, que ressuscitavam naquela que seria a última volta. E quando ao último, face ao rigor dos ventos, foi oferecida a possibilidade de terminar com menos meia volta, eis que o mesmo, mais e mais insolente, saltou sobre os ventos e venceu-os.

E, a final, os sorrisos de todos se juntaram num só.

E foi este o Espírito de 78: o regresso aos tempos em que éramos um só e em que não conjugávamos pronomes individuais, como "eu", "mim", "me", "meu", mas só conjugávamos a força brutal do coletivo, do sorriso único.

É isto o Coletivo de Ferro, ao menos ao jeito de 78.

Gil Caldeira

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Inscrições Encerradas

As inscrições para a Sétima edição do Spirit of 78 Triathlon estão encerradas.
Vemo-nos a 14 de Outubro para mais um dia memorável.

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